Fazer piada com o sotaque regional ou corrigir persistentemente a fala de alguém são exemplos de preconceito linguístico.
O preconceito linguístico é o ato de discriminar uma pessoa pela forma como ela fala. Ele tem origem em um modelo idealizado de língua, presente na gramática tradicional. Essa atitude na verdade esconde um preconceito social, já que a fala das pessoas é carregada de informações sobre o local e a classe social de onde vieram.
Veja mais alguns exemplos:
O preconceito linguístico é uma construção social. Quando alguém defende a gramática normativa em qualquer contexto comunicativo, ignora que o português apresenta enormes diferenças por questões geográficas, históricas e sociais. Desconsidera também que não existe um modo de falar correto e impecável.
Para a Linguística, nenhuma língua é "errada" ou "feia", mas adequada ou inadequada a cada situação. A noção de correção no idioma nasce na Grécia, por volta do século III a.C.
Os gregos criaram a primeira gramática tradicional, baseada na língua utilizada por homens livres e ricos, membros da elite cultural e política da época. Dessa forma, tudo o que se distanciava desse ideal era considerado negativo: a maneira de falar das mulheres, dos escravos e dos pobres.
Esse tipo de pensamento ganhou força e sobrevive nos dias atuais. Às vezes é disfarçado de conselho (“não fale assim, é feio”), às vezes como um lamento (“que pena, não teve estudo, por isso fala assim”). Algumas vezes, o preconceito é escancarado, por exemplo quando as pessoas riem da maneira como alguém fala ou das palavras que diz.
Obviamente, cada sociedade elege uma norma-padrão – usada em documentos oficiais, científicos e em situações de prestígio. Mas é importante saber que essa língua não é única, nem deve ser usada em todos os contextos. Em situações familiares ou informais, por exemplo, seria muito estranho usar a “língua da gramática” para se comunicar.
Agora que a ideia de preconceito linguístico e os mitos que o cercam estão mais claros, é importante também saber como evitar a prática desse tipo de preconceito.
Em linguística, uma construção é considerada erro quando não é dita nem compreendida pelos falantes de uma comunidade. Assim, expressões como menino o, a esta gostosa fruta é, o carros correu e eu fez o azul doze são erros, já que nenhum falante do português se expressa dessa maneira.
Por outro lado, construções consideradas "erradas" como nós foi, teiado e os menino – amplamente utilizadas e compreendidas – são casos de variação linguística.
É claro que em contextos formais elas devem ser evitadas. Em situações informais, no entanto, não há motivo para dizer que “não entendeu” ou que determinada construção “fere os olhos/ouvidos”. É também óbvio que cabe à escola levar a norma-padrão ao maior número de pessoas, para que tenham acesso às construções de prestígio do português.
O sotaque de uma pessoa faz parte de quem ela é: traz elementos culturais, étnicos, sociais e de sua origem geográfica.
Por isso, dizer que alguém fala "feio" ou “engraçado” é uma maneira de discriminar não somente uma característica (o sotaque), mas a própria pessoa. Evite se expressar dessa forma, mesmo que seja em tom de brincadeira.
Corrigir as pessoas durante uma conversa não é um favor, é uma forma de agressão simbólica.
O falante que interrompe alguém para fazer uma correção não solicitada se coloca em posição superior, como se fosse mais inteligente, desmerecendo a fala alheia.
Muitas pessoas se sentem mal por falarem sem cumprir as regras gramaticais à risca. Mas isso não deveria ser motivo de vergonha para ninguém.
A língua é viva, feita por quem fala. Todas as variantes devem ser celebradas, da mais coloquial à mais formal. O mais importante é que a comunicação se estabeleça da melhor forma possível, e que o falante se adapte ao contexto comunicativo em que se encontra.
No livro Preconceito linguístico: o que é e como se faz, o linguista e professor Marcos Bagno aponta oito mitos responsáveis pela manutenção do preconceito linguístico no país. São eles:
O mito da língua única desconsidera a diversidade do português brasileiro.
Ao contrário do que se ouve, no Brasil não se fala apenas um idioma. Aqui são faladas mais de 200 línguas, entre as indígenas e africanas, as trazidas pelos imigrantes e as surgidas no contato entre as fronteiras.
Além disso, a Libras (Língua Brasileira de Sinais) foi reconhecida em 2002 pela Lei nº 10.436/2002 como meio legal de comunicação e expressão. Ela ainda não é uma língua oficial, mas há uma proposta de emenda constitucional (PEC12/2021) para que se torne.
A norma-padrão ainda hoje deriva do português europeu, ignorando as diferenças que existem entre este idioma e o falado no Brasil.
Obrigar as pessoas a empregarem construções que não ouvem e não falam em situações reais de comunicação gera a sensação de que os brasileiros não sabem a própria língua materna.
Este mito parte do pressuposto de que todos os portugueses falam e escrevem respeitando as convenções da gramática tradicional, o que não é verdade. Assim como há variação linguística no Brasil, há em Portugal e em qualquer outro lugar onde existam seres humanos promovendo comunicação.
Existe, no ensino, a confusão entre aprendizado de língua e memorização de nomenclaturas gramaticais.
Todo falante de uma língua conhece e sabe empregar com naturalidade suas regras de funcionamento. É papel da escola ampliar esse conhecimento e apresentar ao falante uma visão mais crítica da língua. Ao contrário, muitas vezes as aulas de português servem apenas para classificação de estruturas, sem nenhuma criticidade ou função.
Esse mito funciona como instrumento de manutenção das classes privilegiadas. A língua é vista como uma entidade mística e inatingível, dominada apenas pelas elites, que têm contato com a norma-padrão desde o nascimento.
Diversos fenômenos linguísticos são comuns e existem desde a passagem do latim para o português. Um exemplo disso é o rotacismo (a troca do L pelo R) em palavras como “plata”, que dá origem a “prata”, ou “playa”, que se transforma em “praia” no português.
Esses fenômenos, porém, são ridicularizados na fala de pessoas não escolarizadas ou distantes das regiões de prestígio do país (como em “chicrete” e “Cráudia”). O que está por trás desse mito é um preconceito social: as pessoas são julgadas não por aquilo que dizem, mas por aquilo que são.
Isso é ainda mais claro quando se observa que construções fora da norma-padrão empregadas por pessoas escolarizadas são muitas vezes ignoradas ou imitadas.
No Maranhão, há uma preferência pela utilização do pronome “tu” acompanhado da flexão verbal em segunda pessoa, como em “tu vais”, “tu queres”, “tu dizes”, como em Portugal.
Isso não significa que a variante falada naquele lugar seja melhor: ela é mais conservadora, porque mantém estruturas que já não são mais usadas em outras partes do país.
Uma explicação para isso é o fato de o português não ter se fixado da mesma forma em todo o Brasil. Por exemplo, o Nordeste recebeu visitantes de diversos lugares na época da exportação de cana-de-açúcar; parte do Maranhão foi colonizada por holandeses e depois recuperada por Portugal.
O Rio sofreu forte influência do português europeu por receber a corte no século XIX. Já Minas Gerais e São Paulo foram povoados mais tarde, por meio das entradas e bandeiras. Isso sem contar as diversas outras histórias de colonização pelo país afora.
Existe na sociedade a ideia de que a fala "correta" é uma imitação da escrita.
A fala existe há centenas de milhares de anos, é uma característica intrínseca do ser humano. A escrita, por outro lado, surgiu há cerca de 9 mil anos, como tentativa de registrar aquilo que o homem produzia. Trata-se, portanto, de um produto cultural da humanidade. Isso significa que a escrita se baseia na língua oral e não o contrário.
Além disso, é preciso também saber que a ortografia padrão é uma convenção, criada para uso em documentos oficiais e em veículos de informação. E nem sempre foi assim: apenas em 1885 foi publicado o livro de regras As bases da ortografia portuguesa, de Gonçalves Viana. Antes disso, as pessoas escreviam do jeito que parecesse melhor.
Observando documentos antigos, é possível notar inconsistências na grafia de diversas palavras.
Normalmente a palavra "gramática" é empregada como sinônimo de “gramática tradicional”, um livro de regras que se estuda na escola.
Entretanto, seu sentido é mais amplo. Há, por exemplo, gramáticas históricas, com foco nas mudanças linguísticas ocorridas ao longo do tempo. Ou gramáticas descritivas, que pretendem mostrar como uma língua é utilizada por uma sociedade. As gramáticas descritivas são muito úteis no estudo de línguas indígenas, por exemplo.
Além dessas, há a gramática internalizada, ensinada por meio da tradição oral e do contato com outras pessoas do grupo social. Por volta dos três anos, uma pessoa já domina a gramática internalizada de sua língua materna e consegue falar de modo que seja compreendido pelos demais. Assim que é alfabetizada, essa pessoa pode também se manifestar por escrito. Isso, em Linguística, é falar e escrever "bem": ser capaz de se comunicar e se fazer entender.
Claro que a escolarização aprimora esse processo. As pessoas têm contato com registros mais formais, ampliam vocabulário, conhecem diversos gêneros textuais, etc. Mas não se pode dizer que uma pessoa que não teve contato com a gramática tradicional não saiba falar.
O domínio da norma culta não apaga as desigualdades sociais ou problemas que dificultam o progresso econômico.
Dominar a norma culta da língua portuguesa é ter a possibilidade de adaptar o seu discurso a outros ambientes sociais para os quais o seu uso é necessário. É ter mais uma ferramenta para se comunicar em lugares que fazem uso dela.
Se este mito fosse verdade, professores de português seriam as pessoas mais ricas de uma sociedade, não é mesmo? Infelizmente, isso não acontece.
Referências bibliográficas:
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: ciência e senso comum na educação em língua materna. Revista Presença Pedagógica, Belo Horizonte, set. 2006.
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é e como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
INSTITUTO DE LINGUÍSTICA TEÓRICA E COMPUTACIONAL. História da Ortografia do Português. Portal da Língua Portuguesa, Lisboa, [2022].
TOMANIN, Cássia Regina. Português brasileiro: unificado e conservador ou diversificado e inovador? Ave Palavra: Revista Digital do Curso de Letras, Alto Araguaia, n. 12, jul./dez. 2011.